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Jardim dos desterrados: o paisagismo para inglês ver

Atualizado: 13 de ago.

Inspirado no livro “Paisagismo Sustentável”, de Ricardo Cardim (Editora Olhares, 2022).



“Para inglês ver” é uma expressão que denota algo feito simbolicamente, sem valor real ou intenção de ser cumprida, apenas para parecer bom ou enganar. Dizem que o surgimento da expressão vem da época do fim do tráfico de escravizados, em que a proibição no Brasil se deu por pressão comercial da Inglaterra, embora não houvesse a menor intenção de ser acatada. Nessa época, também, as boutiques cariocas eram lotadas de produtos ingleses sem a mínima utilidade nos trópicos - como patins de gelo -, fruto da exclusividade britânica no mercado interno do império. 


Um século mais tarde, em Raízes do Brasil (livro de 1936), Sérgio Buarque de Holanda diz sobre o hábito brasileiro de implantar culturas europeias em um território muito maior e completamente estranho às condições naturais do Velho Mundo.  Das formas de convívio, religião, arquitetura, comportamento e bens de consumo: “Timbrando em manter tudo isso em ambiente desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em própria terra”. Tal hábito é umas das características mais impactantes para a formação da cultura brasileira.


Do mundo corporativo até a linguística, cada área do conhecimento mantém a cultura dos desterrados à sua maneira: seja no exagero de anglicismos, na construção de ‘chalés’ no meio do Cerrado, na imitação de desenhos urbanos europeus ou na busca por uma pronúncia perfeita de uma língua que nunca foi nossa. No paisagismo, é Ricardo Cardim quem aponta a cultura dos desterrados para um país que ainda hoje mantém uma predileção fanática por espécies exóticas, mesmo abrigando a maior biodiversidade do mundo. Não é incomum se deparar com projetos que tentam imitar qualquer paisagem europeia  - a Toscana italiana ou os jardins de Versalhes - em espaços públicos e privados no Brasil. 


Interessante destacar também o papel das classes sociais na difusão de espécies exóticas e algumas invasoras nos ecossistemas brasileiros. As aristocracias europeias, estufadas com as ‘conquistas’ na Ásia e nas Américas, logo passaram a colecionar plantas tropicais nas estufas e jardins botânicos como símbolo do acesso ao raro, exótico e caro. Não à toa, foi no Jardim Botânico de Dahlem, em Berlim, onde Burle Marx - um brasileiro - teve sua primeira paixão com jardins da flora tropical.

Nas elites brasileiras a lógica é a mesma: sem valorizar a própria flora - que é mato - mas importando tudo quanto possível da Europa e Ásia. Um curto exemplo: os Samambaiaçús - samambaias gigantes da Mata Atlântica - são muito cultivados nas coleções europeias; no Brasil estão praticamente extintos, enquanto nossos jardins infestados de Palmeiras Imperiais, Palmeiras Latânias, Arecas, Jibóias,  bambus exóticos, crótons, azaléias e uma infinidade de outras espécies estrangeiras. A falta de ‘referencial nativo’, por assim dizer, nos jardins públicos e privados das classes mais altas faz a nossa flora local, presente nas matas e nas fronteiras do urbano e rural parecerem ‘mato’ para as demais classes. E quem quer mato em casa?


Talvez por isso a classe média urbana mantenha uma predileção acrítica aos jardins da Europa, com composições de pinheiros e ciprestes, arbustos topiados e quase nada brasileiro.  

Jardim no bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte. Nas casas, exóticas topiadas; do outro lado da rua, remanescentes de Floresta Estacional Semidecidual, no Parque das Mangabeiras.
Jardim no bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte. Nas casas, exóticas topiadas; do outro lado da rua, remanescentes de Floresta Estacional Semidecidual, no Parque das Mangabeiras.

Antes voltado majoritariamente ao embelezamento, hoje o paisagismo já é entendido por diversos setores como uma ferramenta eficaz de adaptação climática das cidades frente às mudanças do clima. Curiosamente, um dos fatores para essas alterações climáticas é justamente a perda da biodiversidade nativa. Não custa lembrar que a maior parte da população brasileira reside em áreas urbanas. Mas como se importar com o desmatamento do Cerrado e a perda de pequizeiros, pau-santo, cagaiteiras e buritis se tudo que se conhece é palmeira imperial e areca bambu? 


A adaptação climática das cidades, portanto, passa necessariamente pela cultura: só se adapta o povo que reconhece a sua riqueza natural. Um povo que não quer a sua natureza nem na porta de casa, portanto, em breve viverá em cidades desterradas pelo clima.







Autor: Luciano Goulart é arquiteto e urbanista pela UFMG, fundador do Instituto Mata Urbana e pesquisador dos ecossistemas nativos de Cerrado e Mata Atlântica na malha urbana da metrópole mineira.


 
 
 

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